O governo Dilma Rousseff usou a crise econômica como argumento para a criação, por meio de votações aceleradas na Câmara e no Senado, dos fundos de pensão privados dos servidores públicos federais (Funpresp). Mas na visão da auditora fiscal Maria Lucia Fatorelli, é justamente a natureza da crise econômica que atinge principalmente a Europa e os Estados Unidos um dos elementos que deveria ter sido considerado pelo governo para não criar as três fundações de aposentadoria complementar, uma para cada poder da República. “Os fundos de pensão estão quebrando em várias partes do mundo”, afirma Fatorelli, que é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, movimento que estuda o desenvolvimento do endividamento público no Brasil.
A auditora também sustenta que o problema das contas públicas no país não é causado nem pelo custo de pessoal nem pela Previdência. “O verdadeiro rombo está na dívida, que nunca foi auditada”, observa, em entrevista concedida, por email, aos jornalistas Juliana Silva, da Redação do Sintrajud, e Hélcio Duarte Filho, do LutaFenajufe. “A política que privilegia a dívida é a responsável pelo grande paradoxo do Brasil: ao mesmo tempo em que somos a 6a potência mundial, somos um dos países mais injustos do mundo, ocupando a 84a posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) medido pela ONU”, critica.
Na análise que faz, Fatorelli explica que a origem da atual crise da dívida que abala EUA e Europa está no setor financeiro e decorreu do excesso de emissão pelos bancos de “produtos financeiros” sem lastros, isto é, sem garantias reais, “principalmente os derivativos” – emissões possibilitadas “pela desregulamentação e autonomia do setor financeiro bancário”.
Toneladas desses papéis, prossegue, encontram-se abrigados nos “bad banks” em várias partes do mundo, à espera de serem trocados por ativos reais, obtidos principalmente em novas privatizações. Outra parte destes papéis, adverte, já provoca sérios danos em fundos de pensão. A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que reúne as mais desenvolvidas economias do mundo, alertou para o perigo que isso representa para os fundos de pensão: “Existe o risco de que as pessoas que investiram nesses fundos recebam pouco ou nada depois de se aposentar”.
Para dirigentes sindicais do Judiciário Federal, que se opunham à aprovação do projeto de lei que criou os fundos complementares privados para os servidores no Brasil, esse cenário serve de alerta para os trabalhadores, que precisam seguir lutando pela Previdência pública. Para os atuais servidores, que tendem a sofrer assédio do governo para que abandonem o sistema público e abracem o fundo de pensão, mostra o destino que é dado ao dinheiro das aposentadorias e o risco que pode correr quem aderir ao fundo. “O [governo] já mostrou que na verdade o Funpresp é para quem está aí. Todo mundo fala: isso é para quem vai entrar nos serviços públicos, mas não é, você é o alvo”, alerta o servidor Cleber Aguiar, dirigente do sindicato de São Paulo (Sintrajud) e integrante do movimento LutaFenajufe, que considera urgente uma campanha que informe à categoria o que significa essa aposentadoria complementar privada.
A seguir, trechos da entrevista concedida por Maria Lucia Fatorelli:
A obstinação do governo federal em garantir o superávit primário, atrelado à Lei de Responsabilidade Fiscal, tem sido responsável por enormes cortes no orçamento público. Quais são os impactos desta política tanto na economia como na vida dos trabalhadores?
Em primeiro lugar, é importante compreender que essa política se deve ao modelo econômico vigente no país. Tal modelo coloca o funcionamento do Estado a serviço do enorme privilégio à dívida pública, destinando prioritariamente os recursos públicos para o pagamento dos juros mais altos do mundo, em detrimento do atendimento de todas as demais necessidades sociais.
O reflexo dessa política é visível para a economia como um todo – haja vista o pífio crescimento do PIB – bem como para os trabalhadores, que têm seus reajustes negados e direitos sociais desatendidos. A política que privilegia a dívida é a responsável pelo grande paradoxo do Brasil: ao mesmo tempo em que somos a 6a potência mundial, somos um dos países mais injustos do mundo, ocupando a 84a posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) medido pela ONU.
O superávit primário – representado pelo corte em todas as demais áreas orçamentárias, para “sobrar” recursos para o pagamento dos juros aos rentistas - é apenas uma das fontes de recursos para o pagamento dos juros da dívida pública. Em 2010 o corte foi de R$ 50 bilhões e durante o ano, em decorrência de recordes de arrecadação, mais R$ 10 bilhões foram destinados ao superávit primário. Iniciamos 2011 com outro corte recorde de R$ 55 bilhões, que atingiu todas as demais áreas orçamentárias, inclusive saúde e educação.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem sido utilizada como argumento para vetar legítimos reajustes aos trabalhadores, não estabelece limite algum para o custo da insana política monetária em prática no país, que tem provocado prejuízos estratosféricos ao Banco Central: em 2009, o prejuízo do Banco Central chegou a R$ 147 bilhões; em 2010, R$ 50 bilhões. A LRF impõe ao Tesouro Nacional a obrigatoriedade de arcar com todo esse prejuízo do Banco Central. Quem paga a conta é a sociedade, pois daí vem os contingenciamentos e emissão de mais dívida para pagar juros.
Para a dívida são destinados todos os lucros das estatais distribuídos ao governo; as receitas das privatizações, os valores recebidos dos estados e municípios pelo pagamento de suas dívidas refinanciadas pela União, e ainda todos os superávits financeiros verificados em outras rubricas, em conformidade com as Medidas Provisórias 435 e 450, utilizadas desde 2008 para transferir grandes somas de recursos para o pagamento da dívida.
Outro privilégio da dívida está inserido na Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO – que garante atualização monetária à dívida desde o Plano Real (que congelou todas as demais despesas, especialmente salários). A LDO tem garantido à dívida atualização automática, mensalmente, por índices calculados por instituição privada (Fundação Getúlio Vargas) que tiveram variação muito superior ao índice oficial de inflação do país (IPCA)1.
Enquanto a LRF estabelece limites para os gastos públicos, não há limites para o volume de dívida pública federal, nem para o patamar de juros. A dívida brasileira já supera R$ 3 trilhões ou 67% do PIB. Essa política de atualização automática para a dívida acrescida de juros exorbitantes e ausência de limites tem provocado o crescimento acelerado da dívida pública brasileira, levando-nos a um ciclo vicioso de exigência de volumes crescentes de recursos para o pagamento dos juros e amortizações que incidem sobre a mesma. O gráfico a seguir demonstra a evolução dos gastos desde o Plano Real e derruba o mito de que os gastos com Pessoal ou Previdência seriam os responsáveis por desequilíbrios nas contas públicas. O verdadeiro rombo está na dívida, que nunca foi auditada.
Orçamento Geral da União – Gastos Selecionados (R$ milhões)
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional - SIAFI. Inclui a rolagem, ou “refinanciamento” da Dívida
O governo justifica a decisão de aprovar o PL 1992, que cria os fundos complementares de Previdência dos servidores, na crise econômica que atinge a Europa. Seria uma medida preventiva. Ao mesmo tempo, no entanto, diz que os efeitos nas contas públicas serão de longo prazo, não serão imediatos (embora não haja consenso quanto a isso). Esse discurso não pode estar preparando o terreno para futuras mudanças, atingindo diretamente também quem já está nos serviços públicos e não apenas novos servidores?
Na verdade, a crise internacional deveria ser motivo para não aprovar o PL-1992, pois os fundos de pensão estão quebrando em várias partes do mundo. Na prática, esse projeto se insere em tendência mundial ditada pelo Banco Mundial, de reduzir a participação estatal a um benefício mínimo, como alerta Osvaldo Coggiola, em seu artigo “A Falência Mundial dos Fundos de Pensão”: “Com este esquema, o que se quer é reduzir a aposentadoria estatal de modo a diminuir o gasto em aposentadorias e aumentar os pagamentos da dívida do Estado.”
A raiz da atual crise “da dívida” que abala a economia dos Estados Unidos e Europa desde 2008 está na crise do setor financeiro, que estourou em 2008 quando as principais instituições financeiras do planeta entraram em risco de quebra. Tal crise dos bancos decorreu do excesso de emissão de diversos produtos financeiros sem lastro – principalmente os derivativos - possibilitada pela desregulamentação e autonomia do setor financeiro bancário.
Toneladas desses papéis sem lastro – tratados pela grande mídia como “ativos tóxicos” – estão abrigados em “bad Banks” em várias partes do mundo, à espera de serem trocados por “ativos reais”, principalmente em processos de privatizações. Outra parte já está provocando sérios danos aos fundos de pensão, como adverte Osvaldo Coggiola: “... duas Agentinas e meia faliram nos Estados Unidos como produto da crise do capital, levando consigo os fundos de pensões lastreados em suas ações. Na Europa, a situação não é melhor. A OCDE advertiu sobre o grave risco da queda nas Bolsas sobre os fundos privados de pensão, cuja viabilidade está ligada à evolução dos mercados de renda variável: Existe o risco de que as pessoas que investiram nesses fundos recebam pouco ou nada depois de se aposentar.
O art. 11 do PL-1992 não permite ilusões quanto ao risco para os servidores federais brasileiros, pois assinala que a responsabilidade do Estado será restrita ao pagamento e à transferência de contribuições ao Funpresp. Em outras palavras, se algo funcionar errado com o Funpresp; se este adquirir papéis podres ou enfrentar qualquer revés, não haverá responsabilidade para a União, suas autarquias ou fundações.
É totalmente previsível que a partir do momento em que a maioria dos trabalhadores deixarão de ter segurança no recebimento de suas aposentadorias, aqueles que já se encontram aposentados serão taxados de “privilegiados”, o que justificará novas reformas que modificarão os benefícios antes conquistados. Isso não é novidade; já ocorreu diversas vezes em nosso país e no mundo, e continuará a acontecer até o momento em que a classe trabalhadora se perceba como uma – independentemente de ser do setor público ou privado, início ou fim de carreira, ativo ou aposentado. A disputa entre setores da classe trabalhadora nos enfraquece e possibilita os cortes de direitos ora em um setor ora em outro. Somos a maioria e precisamos aprender a nos mobilizarmos conjuntamente para barrar o avanço da financeirização que massacra os trabalhadores.